sexta-feira, 6 de junho de 2014

Odisseia (2013)

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Odisseia de Tiago Guedes é uma mini-série portuguesa que para além da autoria conjunta de Guedes, com Gonçalo Waddington e Bruno Nogueira (juntando estes dois últimos enquanto protagonistas), reune ainda um conjunto dos mais fortes intérpretes nacionais da comédia e de drama.
Dividida naquilo a que se podem chamar dois momentos chave, Odisseia conta-nos no primeiro deles a história dos amigos Waddington e Nogueira que interpretando-se a si próprios que, após a tentativa de suicídio frustrada deste último, partem numa viagem de auto-caravana sem um rumo certo pelo interior profundo de Portugal onde se abstraem das suas vidas e problemas ao mesmo tempo que encontram todo um conjunto de situações mais ou menos cómicas que têm eventualmente de ultrapassar.
Finalmente o segundo segmento, ou narrativa, contado quase em simultâneo como que de uma consciência se tratasse, transporta o espectador para o interior de um escritório onde, em formato de making-off, somos apresentados aos dois protagonistas e ao próprio realizador Tiago Guedes, que se concentram na elaboração das suspostas histórias a desenvolver pelo par protagonista.
Com um conjunto de actores convidados que ilustra o melhor que as artes interpretativas portuguesas podem ter e entre os quais se destacam Rita Blanco, António Fonseca, Manuel João Vieira, Miguel Borges e os seus dilacerantes monólogos, Teresa Sobral, Laura Soveral, João Pedro Vaz, Romeu Costa, Isabel Abreu ou Rita Lello, contamos ainda com a participação especial do realizador Sérgio Graciano, do cantor Camané e um sempre inspirado Nuno Lopes como o terceiro (não declarado) protagonista, Odisseia é então uma mini-série de oito episódios que se pode afirmar estar dividida em dois momentos fundamentais. Ao contrário daquilo que tradicionalmente assistimos em séries ou filmes onde todas as personagens nos são apresentadas no seu melhor, com futuros promissores ou onde as suas vidas são perfeitas e sempre num ritmo ascendente, aqui encontramos exactamente o oposto. O espectador conhece Waddington e Nogueira, amigos assumidos e dispostos a mutuamente apoiarem-se nos momentos mais complicados, no pior momento das suas vidas. O primeiro com sérios problemas matrimoniais vai apoiar o segundo que falhou na tentativa de suicídio (nunca explicada) na sua viagem que para além de profissional se transforma sim num percurso onde a amizade e os limites de cada um são testados num ritmo que a cada quilómetro percorrido se torna cada vez mais alucinada e fora de controle.
Da mesma forma que os brilhantes créditos iniciais da autoria de Jerónimo Rocha fazem adivinhar, toda esta história escrita pelas mãos de Guedes, Nogueira e Waddington é, no fundo, fruto das mentes do trio que se encontra naquele escritório a elaborar as mais diversas peripécias e loucuras que os próprios Nogueira e Waddington irão atravessar. No fundo, se pensarmos bem, aquilo que vemos da sua viagem mais não é do que a imaginação a funcionar in loco... Ao espectador é dessa forma dada a permissão para entrar na mente dos criadores e perceber aquilo que na realidade eles pensam e transcrevem para o computador no exacto momento em que o imaginam... no momento em que o criam. Assim, quando inicialmente assistimos ao percurso daquela pequena auto-caravana pelos caminhos tortuosos de um escritório, a ligação entre o mesmo e aquilo a que iremos assistir na viagem desta dupla mais não é do que a sua imaginação, pensamento, loucura e inovação equacionam enquanto a potencial viagem de auto-descoberta de dois amigos que, até então, poderiam assumir ter tudo garantido... desde a família aos fãs, passando pelo sucesso e até pela sua própria e supostamente intocável amizade.
Tal como referi a estrutura desta mini-série difere um pouco daquilo a que o espectador está habituado. Ao conhecer os dois protagonistas no seu pior, preparamo-nos para um registo mais sério e sentido destes actores que já nos habituaram à sua tradicional veia cómica fazendo-nos abstrair daqueles momentos menos positivos que todos temos. Então, o que esperar quando eles próprios começam como qualquer um de nós (afinal, não o são?) e revelam os seus inúmeros mais ou menos explicados problemas existenciais? As suas dores e sofrimentos, os seus pontos fracos e receios e todas as demais ambiguidades que a vida lhes (nos) coloca! Se os três primeiros episódios se centram então nestes dramas e nos porquês de uma tentativa falhada de suicídio concentrando-se assim num drama escondido mas sentido e no peso dos silêncios que sem os comprometerem os aproximam de um plano humano de qualquer figura pública, que tantas vezes é esquecido como se de não-humanos se tratassem, e que nos faz pensar que o pior ainda que não declarado pode a qualquer momento bater à porta. Não te Atrevas, ó Musa..., Harry Dean Stanton e Não Foi por Mal! são assim o espelho deste lado sentimental que apenas voltaria a surgir no psicadélico Variações onde a nossa dupla encontraria uma comunidade perdida no meio do Alentejo profundo que tem como o seu Messias um Sempre Ausente António Variações.
No entanto conhecendo a carreira de Bruno Nogueira e de Gonçalo Waddington, sem esquecer Nuno Lopes que a certa altura é também ele um dos protagonitas de Odisseia, era impensável que toda esta viagem não seguisse por um rumo de perdição e de loucura transformando-se assim numa genial e inteligente comédia apenas abafada pela intensa e devastadora interpretação de António Fonseca como "Balhelhas", o improvável enforcado de Só Temo o que Lá Vou Encontrar..., num segmento que tem tanto de louco como de profundamente emocionante no retrato de um homem que percebemos já não ter nada a perder mas que ganha um estranho alento com a presença daqueles dois improváveis amigos que lhe dão um conforto para o seu próprio final.
Inteligente comédia que (n)os faz esquecer as rotinas, as responsabilidades, os deveres, a família, as obrigações e principalmente que tudo tem um percurso para ser seguido, um rumo para ser levado sem que tal seja uma fatalidade mas apenas uma pequena parte do destino que poderá, e irá, dar caminho a todo um futuro à espera para ser vivido. É através do drama que Odisseia nos prende mas é, no entanto através da comédia, inteligente mas por vezes grosseira que nos faz vibrar com intensas gargalhadas, que nos consegue fascinar. Qual de nós que assistiu a estes magníficos oito episódios não sentiu um pouco do próprio grupo de amigos ali retratado? Qual de nós não sentiu que estava ali um pouco de toda aquela loucura que por vezes ainda sentimos ter dentro do nosso pensamento e que a vontade de o exteriorizar está apenas à distância de um pequeno click que espera ansiosamente por ser pressionado?
No final resta-nos a certeza que não só temos aqui um produto original que segue a linha de programas como O Último a Sair ou Os Contemporâneos que vive numa linha ténue entre a ficção e a realidade, bem como confirmamos um conjunto de nomes fortes, bem fortes, do nosso panorama artístico que consegue quebrar barreiras ao comprovar que são tão grandes na comédia como o são no drama pois afinal... qual de nós pensaria que Bruno Nogueira conseguiria retirar uma interpretação tão forte e dinâmica em drama com os três primeiros episódios como o costuma fazer na comédia onde tão bem o conhecemos?! E principalmente resta-nos a certeza, também ela comprovada, que quando se decide apostar num produto inovador, original e com qualidade argumentativa assim como interpretativa, que a ficção nacional está viva, de boa saúde e que espera não ser remetida para uma qualquer gaveta onde nunca conseguirá atingir todo o seu esplendor. Pensemos bem... Noutro país não estaria esta mini-série a ser multi-premiada e à espera de novas aventuras para a dupla Nogueira/Waddington e seus demais comparsas?! Não estaríamos nós à espera da "nova temporada" que certamente nos iria agarrar à televisão da qual tantos de nós nos sentimos afastados pela ausência de conteúdos originais e inovadores?!
Não sendo aqui o CinEuphoria um blog cuja atenção esteja direccionada para a televisão (mas estou sempre atento), num último pensamento apenas posso questionar-me no facto de... se o formato televisivo tem futuro, e espero que sim, não deverá ele passar por aqui e por estes conteúdos? Odisseia é, sem reservas, um dos melhores trabalhos de ficção portuguesa dos últimos anos com aquilo que se poderá chamar com estatuto de "culto" e irá certamente ser tão grande como é o saudoso Duarte & Cia.
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