sábado, 13 de maio de 2017

Cerca de Tu Casa (2016)

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Cerca de Tu Casa de Eduard Cortés é uma longa-metragem espanhola exibida durante a oitava edição do Piélagos en Corto - Festival Internacional de Cortometrajes de Ficción que hoje termina na Cantábria, e que fora premiada na última edição dos Goya - prémios atribuídos anualmente pela Academia Espanhola de Cinema - com o troféu para a Melhor Canção Original e que conta uma história - entre tantas - de uma Espanha em plena crise económica onde Sónia (Sílvia Pérez Cruz) é despejada da sua casa juntamente com o seu marido e a filha regressando, anos depois, a casa dos seus pais. Uma história que nos revela Pablo (Oriol Vila), o empregado bancário que contribuiu para que a sua situação económica se tornasse cada vez mais precária e ainda Jaime (Ivan Benet), o polícia que tem de retirar Sónia e a sua família da casa que agora já não lhes pertence.
O realizador Eduard Cortés e Piti Español escrevem o argumento deste filme que, infelizmente, tão próximo está das realidades mediterrânicas dos últimos anos sendo portanto muito fácil a qualquer um de nós criar pontos de referência com o mesmo. A história (não) tão simples apresenta-se através de três distintas perspectivas; por um lado temos a protagonista e, no fundo, aquela que acaba por viver todos os pequenos grandes caminhos de um momento difícil quando ela e a sua família se vêem forçados a abandonar a casa para a qual trabalharem e que é, afinal, o seu lar. "Sónia" é uma mulher como tantas outras a quem, inadvertidamente, tudo na vida parece começar a correr mal. A falta de trabalho do marido e o seu parco salário, uma filha em jovem idade que necessita toda uma orientação e agora a braços com toda uma espiral de perda e desilusão que a irão condenar ao (in)esperado... o tão anunciado despejo da sua casa. A acompanhar esta história encontramos o "Pablo" de Oriol Vila, o bancário cujo único propósito é garantir o seu trabalho e fazer cada vez mais dinheiro impressionando, dessa forma, os seus superiores. "Pablo" foi quem vendeu a casa a "Sónia" e é seu vizinho de longa data... será ele o rosto de todo um sistema para quem os números e os cifrões representam mais do que as pessoas... será o seu rosto aquele que vemos directamente como o emissário de uma crise agora real e que bateu à porta de mais uma família. Finalmente "Jaime", o polícia com um dilema moral entre cumprir o seu dever e expulsar as famílias sempre que as autoridades competentes assim o ordenam ou, por outro lado, viver com uma consciência mais tranquila recusando-se a fazê-lo mas, como consequência, ter de abandonar o trabalho que, no fundo, o caracteriza.
É com este conjunto de personagens e seus respectivos dilemas que o espectador se vê comprometido em conhecer esta história cheia de pequenos grandes momentos de reflexão sobre a (sua) sociedade e comunidade, revendo nestas experiências mais ou menos ficcionadas, momentos que lhe são próximos, familiares e até por vezes sentido na primeira pessoa. Cerca de Tu Casa é portanto não só o mais recente filme sobre a crise mas sim um em que o espectador pode encontrar não relatos sobre os números e as perdas mas sim sobre as pessoas que estão por detrás dos mesmos e... dos ditos dois lados da barricada. Se por um lado vemos a espiral de decadência e de perda desta família enganada não só por aqueles em quem inicialmente confiou mas também por aqueles que prometeram auxílio em tempo de crise e todas as pequenas consequências que se desenrolam subitamente mais parecendo não quererem terminar nem dar a tal oportunidade esperada, em Cerca de Tu Casa conhecemos também as histórias daqueles que são vulgarmente conhecidos como os vilões... os "homens sem rosto"... aqueles que executam as ordens (de despejo... de despedimento...) e que estão, também eles, a alterar toda a sua vida em nome de uma acção que irá transformá-los em toda a sua essência. Desde o "Pablo" que prometeu mundos e fundos por cumprir, as oportunidades de sucesso num dia de amanhã que agora sabemos não ir chegar sem esquecer o polícia "Jaime" que como braço armado de uma lei injusta executa a expulsão e o afastamento dos sonhos de tantos desiludidos sendo, também eles, meras vítimas de um sistema que espalhou os seus tentáculos à volta de todos. Se estes se recusarem a executar aquilo para o qual são pagos... não serão eles as próximas vítimas do próprio sistema para o qual (agora) trabalham?!
É nesta espiral cíclica e, como tal, assumidamente viciosa que encontramos um conjunto de personagens aprisionadas ao medo da perda... ao receio de encontrarem as suas vítimas sistematicamente penhoradas e sem esperança de um dia melhor. O medo que os condena a um fim mais ou menos esperado no qual apenas podem contar com um núcleo restrito de pessoas que quase sempre se resume à sua família mais próxima mas que, em tantos outros encontram os seus inesperados pares, que partilham experiências, momentos e histórias em comum. Os milhares de pessoas que um dia resolveram sonhar em construir uma vida, ter planos, objectivos e metas por cumprir mas que o chamado "mundo da finança" resolveu testar, encurtar e destruir. Vidas adiadas? Interrompidas? Mortas?!
Mas se toda esta linha narrativa baseada - no fundo - naquilo que todos nós conhecemos desses últimos anos, a grande inovação de Cerca de Tu Casa chega através não da dramatização que lhe está obviamente inerente mas sim pela forma como Eduard Cortés resolve musicar alguns desses momentos. Se este não pode ser considerado um musical tradicional onde a quase totalidade do filme está musicado/cantados pelos respectivos actores, a realidade é que os seus lamentos, tristezas e afinal, todas as confissões das suas desilusões e sonhos perdidos ganham toda uma nova dimensão quando assistimos àquilo que deveriam ser os pontos altos do filme (pela elaboração das coreografias e histórias cantadas) transformados em testamentos de vidas que ainda não terminaram. Através dos pequenos relatos cantados com que brindam o espectador, este assiste a todo um desabar de esperança compreendida e a uma invulgar tristeza que se deixar transmitir por olhares agora sem brilho, sem luz e, assumindo-o, sem qualquer réstia de esperança. A vida, nestes instantes musicados, terminou para estas personagens... Tal é a qualidade da interpretação deste conjunto de inspirados actores capazes de se "despir" da sua personalidade conferindo alma àqueles que (não) existem para lá deles próprios.
E é aqui que reside o trunfo maior de Cerca de Tu Casa. Várias são as histórias sobre a crise, sobre as pessoas que a ultrapassaram e aqueles que com ela definharam. Tantas conhecemos e outras tantas ficaram por contar. No entanto, conseguir transmitir essas tristezas e esses sonhos perdidos através de segmentos musicais que fazem culminar toda uma dor sofrida é obra de mestre, e estes momentos valem por todo um filme que, claro está, prende o espectador ao seu lugar fazendo-o recordar tanto que escutou, viu, presenciou ou conhece da sua própria realidade. Se a realidade nua e crua tal como é apresentada se sente, estes breves mas intensos momentos onde se despem os rostos do dia-a-dia e se confessam as tristezas que são, agora, um estado normal, tornam vulneráveis actores e público que comungam de uma experiência comum e de uma vivência que não consegue esquecer.
No final, e ainda que Cerca de Tu Casa termine da forma como esperamos desde os instantes iniciais, seria injusto dizer que esta empatia criada com o espectador não lhe deixe uma certa esperança. Não é uma esperança qualquer ou tão pouco aquele sentimento renovado de que "amanhã" tudo será melhor. Qualquer um de nós sabe que esse "amanhã" irá tardar e que nada voltará a ser como aquilo que em tempos fora conhecido. Mas, no entanto, existe uma esperança que para lá de tudo o que foi vivido e de tudo o que foi perdido, "Sónia", "Pablo", "Jaime" e tantos outros anónimos que acabam por viver experiências semelhantes serão assumidamente pessoas diferentes. Não necessariamente melhores mas simplesmente diferentes... Para uns é a ideia de uma esperança renovada, para outros a oportunidade de começar de novo e para outros, ainda que não tão feliz, é a certeza de que a haver uma nova vida, esta não será tida como garantida, agarrada como uma possibilidade incerta tida com confiança e despreocupação mas sim uma oportunidade de ver a vida não com os olhares de alguém sonhador mas de alguém que sabe que tudo o que conquistou pode ser facilmente perdido.
Intensamente triste e dotado de um conjunto de interpretações que coroam essa tristeza, Cerca de Tu Casa brilha ao dar cor a essas histórias (anónimas) de perda, de redenção, de encontro e de uma tentativa de renovação que exalam através de todos aqueles grandes momentos musicados capazes de transmitir através de uma intensa coordenação, todo um desequilíbrio, insatisfação e compreensão de que a perda está sempre à espreita ao virar da esquina.
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8 / 10
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